Pedro e Ana

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O meu nome é Ana, tenho sessenta e cinco anos e cuido do meu marido, o Pedro.

O Pedro trabalhou toda a vida como condutor de camiões, a transportar o vinho que se faz nas adegas cá da zona. Há coisa de dois anos, vimos que ele ficava desorientado, que toda a vitalidade e a genica que ele sempre tinha tido se iam apagando. Andámos de médico em médico e todos nos diziam que com a reforma ele tinha-se ido "um bocadinho abaixo" mas eu sabia que havia ali mais qualquer coisa. O homem irrequieto e ativo com quem eu me casara tinha desaparecido. Precisava de uma resposta, fosse lá qual fosse. Um dia, o Pedro perdeu a aliança de casamento. Um homem que nunca na vida se tinha perdido, que era certinho como só ele. Levantava-se e não fazia nada em todo o dia. Alguma coisa não batia certo.

Finalmente lá demos com uma psicóloga que lhe diagnosticou Alzheimer. Aquilo foi duro, mas pelo menos sabíamos o que ele tinha.

Eu tenho cuidado de outros desde que era menina. Aos oito anos deixei de ir à escola para cuidar da minha irmã enquanto a nossa mãe estava na horta. Depois comecei a trabalhar, casei-me e logo vieram os filhos. O Pedro quis que eu ficasse em casa durante uns anos para tratar deles. É o trabalho mais importante de uma mãe, cuidar dos filhos.

Quando eles cresceram continuei a cuidar, mas de uma casa. Há trinta e sete anos que tomo conta de uma quinta próxima. Mas uma coisa são os cuidados e outra é tomar decisões. O meu marido sempre foi o homem da casa, o que se ocupava de ganhar o pão e de organizar as coisas, de decidir. De repente, tive de pôr de parte a minha timidez, as minhas inseguranças e os meus receios. Eu sempre fui muito acanhada, o Pedro é que era mais afoito, mais impulsivo. Eu era a precavida. Mas agora está tudo de pernas para o ar. Eu é que tenho de ser forte e decidida. Agora as decisões são todas minhas.

É incrível a força que nós somos capazes de ir buscar quando faz falta. Se mo tivessem dito há anos, não tinha acreditado.

Por enquanto, lá vamos andando. O nosso filho mais velho vive connosco, e é ele que nos ajuda para podermos ir ao centro uma vez por semana.

A Associação de Familiares dos Doentes de Alzheimer da nossa área também nos dá uma grande ajuda. Quando lá vamos, o Pedro faz convívio com pessoas que estão na mesma situação que ele e a psicóloga, a dra. Sandra, dá-nos pautas e conselhos, tanto a ele como a mim.

Lá dão-nos exercícios para ele fazer em casa, coisas que estimulam a memória, como os livros de pintar. Porque o que se passa é que ele fica desorientado e depois enerva-se. Os vizinhos estão avisados, e ele anda sempre com uma medalha ao pescoço que indica a doença que sofre e onde mora. Assim, se algum dia sair sozinho e se perder, alguém poderá ajudá-lo a voltar a casa.

O pior para o Pedro é ter ficado sem a carta de condução. Para ele formava parte da sua identidade, da sua forma de ser. Agora já não pode guiar e fica muito irritado com isso. E depois, quando ele se zanga, não hesita em dizê-lo sem panos quentes. Transformou-se numa pessoa muito desinibida, tanto é assim que às vezes me faz passar vergonhas.

A hora do duche também é complicada. Ele não quere que o ajude, mas por vezes confunde o creme hidratante com o champô. Nesses casos o meu filho lá consegue dar-lhe a volta: diz-lhe que se tomar duche vai haver um prémio e depois traz-lhe umas canetas novas ou qualquer coisa do género. Temos de ir aprendendo truques novos todos os dias.

O Pedro também tem dias bons. Nós chamamos-lhes os "dias doces", porque ele se lembra de tudo e parece que nada mudou, apesar de sabermos que não é assim.

Eu vou-me reformar em Dezembro. Vou deixar de tomar conta da quinta para passar a cuidar do Pedro. E vamos lá a ver se entretanto chegam os netos.

Estando os dois juntos, podemos continuar a cuidar dos outros. Porque a vida é assim mesmo.